Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 23 de setembro de 2009.
VERONA – O Brasil é um país com uma grande e longa tradição no instituto do asilo político e, portanto, no respeito aos direitos humanos e na prática da tolerância, virtude que o sábio Voltaire acertadamente apontava como o apanágio da Humanidade.
De fato, da Europa, recebemos os refugiados dos mais diversos países. De Portugal, recebemos os perseguidos de Salazar e, com o triunfo da Revolução dos Cravos, os próceres do salazarismo. Da Itália, recebemos os perseguidos de Mussolini, da Alemanha, perseguidos de Hitler. De Espanha, as vítimas do franquismo. Da China, acolhemos contingentes de nacionalistas, após a vitória do Partido Comunista Chinês na guerra civil encerrada em 1949.
Da mesma forma, o Brasil recebeu do leste Europeu, perseguidos políticos de regimes diversos. Na América do Sul, durante décadas recebemos os refugiados de Stroessner e, quando de sua derrubada, o próprio, que viveu tranqüilamente até a morte em Brasília. Do Líbano, recebemos tantos refugiados que nossa população de origem libanesa se tornou maior do que a daquele país.
Com o passar dos anos, a herança sociológica dos refugiados aqui recebidos, e que se tornaram brasileiros, passou a compreender a nossa cultura, com os mesmos valores de que lançamos mão para conceder o asilo: o respeito à dignidade humana, à liberdade de pensamento, à liberdade de manifestação política, e à observância dos direitos humanos fundamentais.
Da mesma forma, o direito internacional de regência reconhece não apenas o direito da parte do Estado de conceder o refúgio decorrente do instituto do asilo político, como o artigo 14 da Declaração Universal de Direitos Humanos assegura o direito do indivíduo de buscar a proteção do asilo como princípio geral. A Comissão de Direitos Humanos da ONU (Organização das Nações Unidas), por sua vez, preparou uma declaração sobre o direito de asilo em 1960 na qual afirmou que era o dever do Estado aceitar asilos políticos, “à exceção de casos de segurança nacional ou de segurança da população”.
Assim, a causa da manutenção da política tradicional de concessão de asilo político pelo Brasil encontra-se hoje ameaçada pelo caso Cesare Battisti. A medida, que é de resto um ato de manifestação da soberania do Brasil, por meio do Poder Executivo, acha-se em risco por uma possível equivocada manifestação do Poder Judiciário, instigada por um governo estrangeiro com poucas credenciais democráticas. Na Itália, a questão tomou caracteres de uma vendettae é explorada politicamente por um governo desmoralizado.
Notoriamente um estado cliente dos EUA, a Itália é hoje uma grande e sistemática violadora dos direitos humanos, recebendo críticas da ONU e da própria União Européia. Seu governo, caricato e bufo, de extrema direita é vilificado, repudiado e ridicularizado mundo afora. O tratamento desumano dispensado aos imigrantes é um exemplo que ofende a consciência humana.
Vigilantes racistas, que evocam os rufiões conhecidos por camisas negras de Mussolini, pelo uniforme que utilizavam, patrulham as ruas do norte do país, onde Garibaldi, que se refugiou no Brasil devido a uma sentença de morte em Genova, deixou de ser herói. Suor facial passou a ser motivo de suspeição policial nos seus aeroportos. Minorias são identificadas e perseguidas. Certas liberdades internacionalmente reconhecidas, como as manifestações do culto religioso, são restritas ou proibidas.
O caso Cesare Battisti, dentre nós, tornou-se emblemático para a manutenção da causa dos direitos humanos e de nossa ordem constitucional. Não cabe ao Poder Judiciário brasileiro, em primeiro lugar, usurpar a prerrogativa do Poder Executivo na manifestação de qualquer ato de soberania nacional, incluindo-se a concessão do asilo, como decorre do artigo 84 do texto constitucional.
Da mesma maneira, não é lícito ao Poder Judiciário decidir contra legem,em violação ao artigo 4º da Constituição Federal que dispõe dever o Brasil reger-se nas suas relações internacionais, inter alia, pelo princípio da prevalência dos direitos humanos (caput e II). Por último, o nosso Poder Judiciário, esteio e garante de nossa ordem jurídica e do estado de Direito, não pode se prestar a comprometer a dignidade nacional.