Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 21 de janeiro de 2009.
SÃO PAULO – O período que se convencionou na Itália chamar de “anos de chumbo”, nome inspirado no filme de Margarethe von Trotta, vai aproximadamente de 1968 até o início da década de 80. Naquela época, o Estado italiano estava fragilizado, não apenas pelas frágeis estruturas decorrentes de sua tardia formação, apenas no final do século 19, mas também pelos efeitos da derrota do país na 2ª. Guerra Mundial, quando formou parte das chamadas Potências do Eixo, bem como porque era um peão dos EUA na chamada guerra fria.
Sucessivos governos italianos alternavam-se no poder, às vezes em questão de apenas dias. Conforme se demonstrou posteriormente, os principais partidos políticos italianos eram compostos de elementos corruptos, de membros do crime organizado, notadamente da Máfia siciliana, e de agentes de governos estrangeiros. A desesperança nacional com tal estado de coisas era enorme.
No vazio de poder, instalou-se o caos. A política institucionalizada perdeu totalmente a credibilidade. Nesse clima, logo surgiram forças políticas de esquerda e de direita, que formaram organizações revolucionárias. Na esquerda estavam, dentre outras, as Brigate Rosse (BR), os Nuclei Armati Proletari (NAP) e os Proletari Armati per il Comunismo (PAC).
De outro lado, na direita estava a Terza Posizione, a Avanguardia Nazionale e a Ordine Nero. Órgãos do governo italiano estavam, por sua vez, infiltrados por agentes de inteligência de potências ocidentais que, juntamente com os organismos de direita e esquerda praticavam atos de violência, em violação às leis do país.
O Estado italiano, como ocorre normalmente nestas ocasiões, diminuiu as liberdades constitucionais, condicionou o estado de Direito, deu poderes extraordinários às forças policiais, inclusive o de homicídio, da mesma forma que manipulou e influiu decisivamente no resultado de inquéritos e julgamentos, comprometendo a independência do poder judiciário do país.
Cesare Battisti foi membro da organização Proletari Armati per il Comunismo, supra mencionado. Foi condenado à revelia, à prisão perpétua, pena máxima, por quatro homicídios praticados no final dos anos 70, em processo em que respondeu à revelia, com um único testemunho adverso, obtido através do frágil instituto da delação premiada. O clima institucional do julgamento era o já descrito.
Refugiado anteriormente em outros países, onde teve a guarida de governos de esquerda, Cesare Battisti acabou por vir ao Brasil, onde foi preso pela Polícia Federal, na cidade do Rio de Janeiro, em 2007. Valendo-se de direitos conferidos pela Constituição Federal, por diversos tratados assinados pelo Brasil, bem como pela legislação ordinária, constituiu advogados e tratou de pleitear o reconhecimento de refugiado político e a concessão do correspondente asilo político, por parte de nosso governo.
O seu pleito está de acordo com a lei 9.474/97, que regula a matéria e que manda, em seu artigo 1, ser reconhecido como refugiado, inter alia todo indivíduo que “devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontra-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país.”
A referida lei manda, no seu artigo 12, que o processo de concessão de asilo político seja de competência do Comitê Nacional para os Refugiados (Conare). Da decisão proferida pelo Conare cabe recurso, conforme artigo 29, ao Ministro da Justiça, cuja decisão é final (artigo 31).
Pois bem o rito legal foi cumprido, o Conare denegou por maioria o asilo, cuja decisão foi revertida pelo Ministro da Justiça, que o concedeu. A decisão é final, segundo a lei brasileira, e atendeu a todos os requisitos do ordenamento jurídico doméstico, bem como às tradições brasileiras na área. Perante o direito internacional, trata-se de um ato soberano e legal do Estado brasileiro.
Insurgiu-se o governo italiano com tal decisão administrativa brasileira. Tal reação, que ignora os sólidos fundamentos legais do ato do governo do Brasil e é baseada tanto num sentimento de profunda arrogância como de desprezo pelas instituições nacionais, não deve ser levada em conta.
Se tivesse levado a sério as idiossincrasias políticas italianas, o Brasil teria preso e deportado o próprio Garibaldi, condenado à morte em Genova em 1835, não teria acolhido milhões de refugiados econômicos e políticos de duzentos anos de injustiças sociais naquele país, bem como não teria enviado uma força expedicionária de cerca de 50 mil militares para ajudar a libertar a Itália da ditadura obscena e cruel de Mussolini.