Publicado na Coluna Semanal do Dr. Noronha a convite do sítio “Última Instância – Revista Jurídica”, São Paulo, Brasil, 28 de março de 2007.
SÃO PAULO – O papa Bento 16 em sua exortação apostólica sacramentum caritatis denominou o segundo casamento de praga social. Ao contrário do consensus humani generis sedimentado através os séculos, Sua Santidade não se referiu à peste, à fome e à guerra, os flagelos, as verdadeiras pragas que, ainda hoje, afligem a humanidade. Tampouco se referiu o papa Bento 16 à tirania internacional, fenômeno que, nos dias atuais, determina a triste sorte da maior parte da população global, relegada à miséria e à desesperança.
Ao fazer um diagnóstico errôneo sobre a realidade social e moral do mundo hodierno, por ignorar o óbvio, promover o preconceito e repudiar a tolerância, o papa Bento 16 comprometeu irremediavelmente as premissas éticas de sua exortação, pelo seu falso julgamento ou, como diria o grande filósofo iluminista francês, Voltaire, esprit faux.
Ora, é evidente a qualquer pessoa que detenha o mínimo de common sense, senso comum, que o segundo casamento não é uma praga social. Pragas sociais são a Aids, a malária, a guerra no Iraque, o genocício na África, a fome, a destruição do meio ambiente etc. Em realidade, o segundo casamento é apenas uma prática social contrária à doutrina oficial da Igreja Católica.
Todavia, por corresponder a uma ampla realidade social, na verdade passou a ser amplamente o segundo casamento tolerado por todas as culturas e ordenamentos jurídicos, resguardados os direitos dos cônjuges dos primeiros casamentos e das respectivas proles, assegurando-se a afirmação da ética laica ou secular, sem fé.
Assim, o segundo casamento passou a ser tolerado socialmente mundo afora e é o alicerce organizacional de milhões de famílias, que se consideram justamente ofendidas pela exortação pontifícia.
De fato, já em 1689, John Locke, em sua clássica obra, Carta sobre a Tolerância, advertia que “nenhuma igreja é obrigada, em nome da tolerância, a conservar no seu seio quem, apesar dos avisos, se obstina a pecar contra as leis estabelecidas nesta sociedade; se lhe é permitido violá-las impunemente, acabou tal sociedade… Apesar de tudo, há que se acautelar em não acrescentar ao decreto da excomunhão palavras injuriosas…”
Por mais reprovável e doloroso que seja o estigma social da excomunhão aos divorciados, a qualificação do segundo casamento como praga social, num mundo onde abunda a injustiça e o mal, é uma desnecessária injúria, própria de uma intolerância comum aos fanáticos.
Melhor teria feito Sua Santidade se tivesse observado a lição de Voltaire de que “a tolerância é o apanágio da humanidade”. “Sofremos todos de debilidades e erros: perdoamo-nos reciprocamente as nossas tolices, é a primeira lei da natureza”. “Sem a tolerância”, continua Voltaire em seu formidável Tratado sobre a Tolerância, “o fanatismo devastaria a Terra ou, ao menos, a tornaria para sempre infeliz”. A ofensa gratuita do papa foi absolutamente desnecessária.
É triste verificar-se a queda da Igreja Católica no fanatismo fundamentalista, no encorajamento dos estigmas sociais, na ofensa gratuita, na promoção da intolerância e da falsidade moral. Quantos serão os membros da Igreja Católica que aceitarão o estigma do san benito moral, ou sua infame categorização como “praga social”? A natureza da dignidade humana, comum a todos, repudia veementemente tal infeliz assertiva.