Publicado no jornal Diário da Região, São José do Rio Preto, SP, 26de março de 2025.
Minhas origens familiares maternas são de Nápoles, cuja história, tradições e cultura
sempre captaram o meu imaginário. O seu passado vem da Magna Grécia, de quase 3 mil
anos. Por ali passaram, legando a sua contribuição cultural, os sanitas, os etruscos, os
romanos, os normandos, os franceses e os espanhóis, dentre outros. A língua napolitana,
reconhecida pela UNESCO, é um esplêndido mosaico de influências, fazendo-a
unicamente bela e rica. Por sua vez, o povo tem uma atitude de serenidade na busca da
felicidade, malgrado as adversidades. O desespero, em Nápoles, é um sentimento relegado
para os casos extremos.
Nápoles tornou-se referência na civilização romana e destaque do Renascimento, do
Barroco e do Iluminismo. Nas artes plásticas teve múltiplas manifestações, como o
caravaggismo. É sede de uma das mais antigas universidades e inventou os conservatórios
musicais, responsáveis por aprofundar e aperfeiçoar o pendor natural dos napolitanos,
expresso nas composições populares e clássicas. Primorosa é sua arquitetura,
representativa das diversas escolas no correr dos tempos. A sua gastronomia é a melhor
do mundo e a pizza um patrimônio imaterial da humanidade. Nápoles é um museu a céu
aberto, vivo e vibrante.
O teatro napolitano é concepção fascinante da cultura popular, da língua, da música, dos
valores e do humor de seu povo. O mais antigo teatro em funcionamento no mundo é o San
Carlo, fundado em 1737. Nápoles tem sido um celeiro de grandes manifestações culturais
em diversos setores, cujo catálogo compõe uma vasta enciclopédia do pensamento de
escol. Permito-me mencionar o filósofo Benedetto Croce, o principal intelectual europeu
da primeira metade do século 20, de cuja obra tenho sido um grande admirador, desde a
juventude.
Viajo frequentemente a Nápoles. Minha última estada deu-se há poucos dias, para tratar
da edição italiana de meu dicionário de aforismas napolitanos. Ao aterrizar em Roma,
recebi uma ligação alarmada de minha filha, de Bolonha: “houve um terremoto em
Nápoles! São previstos outros. Firenze está inundada e a Ligúria sofre de tsunamis! O
clima ficou louco. Volte para o Brasil!” De fato, densas e baixas nuvens plúmbeas vertiam
uma chuva tropical. A temperatura era estival no inverno. Os pássaros estavam silentes; os
quadrúpedes, irrequietos.
Assegurei-lhe que o fenômeno imemorial, ocorrido em Campi Flegrei, donde Dante
Aligheri adentrou o inferno, conforme ‘A Divina Comédia’, estaria sob o controle de San
Gennaro. Esse tem resolvido satisfatoriamente várias desgraças, salvo temporariamente
algumas daquelas trazidas pelos EUA. Durante a II Guerra, os seus militares
bombardearam indiscriminadamente a cidade. Bairros residenciais, edifícios históricos,
hospitais, bibliotecas e igrejas foram destruídos, juntamente com os serviços de água e
esgoto. A cidade foi reduzida à pestilência e à fome.
A própria população livrou-se dos nazistas, mas o exército americano agravou a situação
humanitária, institucionalizou a miséria, deixando de combater a epidemia de cólera;
incentivando o mercado negro de alimentos; abandonando os hospitais, além de explorar a
prostituição, para a diversão das tropas. O escritor Curzio Malaparte descreveu em “A
Pele”, como o general Mark Clark comeu os peixes do aquário. Nápoles recuperou-se de
quase tudo, mas ainda não da presença das forças americanas e dos ruidosos turistas
daquela nacionalidade que poluem a cidade com insensibilidade, ignorância e arrogância.
Paciência. San Gennaro ainda está a trabalhar.
DURVAL DE NORONHA GOYOS JR.
Jurista, escritor e historiador. Da Academia de Letras de Portugal e ex-presidente da União
Brasileira de Escritores. Diretor internacional do Sindicato dos Escritores. Conselheiro da
Fundação Maurício Grabois. Escreve quinzenalmente neste espaço às quartas-feiras