Baderna na política

Publicado no jornal Diário da Região, São José do Rio Preto, SP, 23 de outubro de 2024.

Marietta Baderna foi uma cantora e dançarina napolitana exilada no Império do Brasil, em meados do século 19. Com certa formação na dança clássica, ela se notabilizou no pelo viés popular que imprimia às suas apresentações, algo então incomum. Apresentava-se nas ruas para todos, inclusive para os escravos. A sua arte era apreciada pelas multidões, por seu vibrante caráter democrático e sensual, mas causava grandes confusões. Daí o neologismo “baderna” na língua brasileira, que significa grande alvoroço no idioma português.

É notório que o Legislativo, o Executivo e o Judiciário, poderes constitucionais, encontram se em profunda crise, neste difícil momento da história brasileira. O Poder Executivo depende da sustentação parlamentar, dada pelo Legislativo, em grande parte corrupto, incompetente e desprovido de espírito público, sem a qual não teria governabilidade. As concessões feitas não atendem necessariamente ao interesse público. O Judiciário, por sua vez, padece de vários problemas orgânicos, agravados pela proximidade promíscua com os demais Poderes e por um déficit ético da parte de muitos dos membros dos tribunais superiores, que contamina toda a pirâmide funcional.

Em sua origem filosófica, a teoria da separação dos poderes foi adotada pelo Brasil em sua Constituição e por muitos (mas não todos) países, como inicialmente desenvolvida por Montesquieu em “O Espírito das Leis”. Ela contempla caber ao Executivo a tarefa de gestão, ao Legislativo aquela da formulação das leis e, ao Judiciário, a missão da revisão de ambas incumbências, para além de assegurar a observância das leis, a garantia de direitos e a resolução geral dos conflitos existentes na jurisdição nacional.

Dentre nós, a idiossincrática realidade política, inspirada por todas as piores intenções, os sentimentos mais vis e ainda temperada pelas trevas do obscurantismo, com pronunciados lampejos da ganância generalizada, permitiu barafundas, imbróglios e o caos nas relações entre os Poderes. Uma recente manifestação é a intenção do Legislativo em limitar os poderes do Judiciário, porque muitos legisladores se sentem pessoalmente lesados, face às restrições legítimas impostas pelo STF. Outra motivação seria a aplicação da Lei pelo STF contra os congressistas que se julgam imunes.

Esta malévola intenção é expressa na PEC 8/ 2021, na PEC 28/2024 e nos projetos de lei 658/2022 e 4-754/2026. A primeira medida autorizaria ao Congresso suspender decisões do STF (sic); a segunda permitiria ao Legislativo suspender atos dos demais Poderes (sic); e as terceira e quartas ampliariam o escopo do impedimento de ministros do STF (sic), de maneira a contemplar a insatisfação com a jurisdição da Corte Suprema. A aprovação de tais medidas representaria um golpe de morte na democracia brasileira e a instalação da ditadura dos gatunos.

Como parte da campanha de convencimento público da iniciativa, seus propositores procuram desacreditar o perfil dos componentes do STF, tarefa que é facilitada pela cupidez, despudor, desvergonha e cabotinismo dos mesmos, no seu comportamento público. De fato, a falta de recato de nossos juízes da instância máxima não encontra paralelos no direito comparado. Não obstante, esta triste situação ocasional não autoriza o desvirtuamento da estrutura constitucional, mormente em prol de interesses escusos. Não nos esqueçamos que nossa democracia foi recentemente salva graças ao empenho destes mesmos ministros!

Durval de Noronha Goyos Júnior, Advogado qualificado no Brasil, Inglaterra e Portugal. Jurista e escritor. Árbitro do GATT, OMC, CIETAC, SHIETAC e SCIA